Eu nasci no sertão de Pernambuco
Numa fazenda do lado dos burros
Eu sou analfabeto
Mas não sou burro não
Severino Manoel de Souza
Severino, filho de Maria, nasceu no sertão de Pernambuco. Mas isso não quer dizer muita coisa. Como escreveu o poeta João Cabral de Melo Neto, são tantos severinos nascidos no sertão de Pernambuco, com mães chamadas Maria, iguais em tudo na vida… Então, deixemos que ele se apresente:
— Meu nome é Severino Manoel de Souza – analfabeto, sem-teto, catador de lixo e nordestino. Mas vou lançar um livro.
Há um certo tom de exagero nessas palavras. Afinal, seria de estranhar que um analfabeto escrevesse um livro. O que ele quer dizer, em verdade, é que seu conhecimento não foi adquirido nos tradicionais bancos escolares.
— A gente só aprende as coisas quando primeiro a gente sofre.
Assim o sofrimento de Severino: mudou-se aos 13 anos do sítio Olho D’Água Seco – localidade do agreste pernambucano pertencente ao município de Orobó – para o Recife. Estava cansado da vida na roça: lavrar a terra, olhar o gado e cuidar dos onze irmãos mais novos estava pesando-lhe demais nas costas. Resolveu pedir para Guilherme, irmão de sua mãe, que arranjasse algum serviço para ele na cidade grande.
Já fazia dois meses que estava na capital pernambucana, onde ajudava o tio em uma pequena oficina mecânica e em descarregamentos de caminhões, quando ele lhe sugeriu que ajudasse um amigo, de apelido Mané Pintado. Iriam entregar uma carga de ração numa granja de Pau Ferro, bairro localizado no norte da cidade. Na volta do serviço, por volta das onze da noite, Mané Pintado o deixou num ponto de ônibus de uma estrada, que ficava no bairro de Encruzilhada. Disse que lá passava condução que o levaria para a casa do tio.
Severino desceu do caminhão e esperou. E, literalmente, se viu numa encruzilhada. Passaram vários coletivos, para diversas localidades, mas Severino não tinha a quem perguntar, porque ninguém parava no ponto. Como também não sabia ler, não sabia que ônibus pegar. Não sabendo que ônibus pegar, esperou sentado clarear o dia.
— Fiquei sentado lá a madrugada inteira, com a mão no queixo, os braços cruzados, com fome…
Quando finalmente amanheceu, Severino se pôs a andar. Era uma manhã fria, a cerração abatendo ainda mais o seu ânimo.
— Peguei a estrada dos remédios, que vai sair naquele meio de mundo, e entrei por uma avenida. Aí, encontrei um vendedor que me disse que eu já tava perto.
Ao chegar em casa, não disse nada. A manhã inteira suportou calado o sofrimento. Apesar do sono e do cansaço, foi com o tio fazer mais um descarregamento. Só quando voltaram, lá pela hora do almoço, é que disse:
— Meu tio, eu vou comprar uma carta de ABC pra mó d’eu aprender alguma coisa. Quem não lê é cego, burro e tapado. Passei a noite inteira no ponto sem saber que ônibus pegar.
***
Severino foi até uma banca de jornal.
— Moço, você tem a carta de ABC?
— Tenho, por quê?
— Preciso aprender a ler…
— Você quer mesmo aprender? Então, não precisa pagar nada, pode levar de graça.
Com a ajuda do tio, aprendeu primeiro a identificar as vogais. Depois, foi para as consoantes e, logo em seguida, conseguiu escrever o próprio nome. Passou a memorizar as letras e já conseguia rascunhar as primeiras palavras. Tio Guilherme tomava-lhe a lição todas as noites. Quando finalmente se sentiu mais seguro, Severino se impôs um teste: iria a um ponto para identificar os letreiros dos ônibus que passavam.
— O ônibus vinha de longe e eu imediatamente ia ajuntando as letras.
Depois de um ano no Recife, voltou à fazenda do pai, com uma caderneta no bolso e duas canetas na mão. Estava acontecendo uma festança de casamento, com quase todo o povoado de Orobó presente. Olhares enciumados e curiosos começaram a lhe ser dirigidos. E, na mente, as reminiscências de seu sofrimento: sentado a madrugada inteira, sem ver vivalma, não sabendo ler, chegando à casa do tio, sou cego, burro e tapado.
Em terra de cegos, quem tem um olho é rei. Ou melhor, em terra de iletrados, quem sabe ler e escrever é rei. O discurso predominante do povoado:
— Severino, a gente precisa aprender a ler. Hoje a gente está aqui, mas amanhã ninguém sabe, a gente pode ter de ir para a cidade grande. E lá, se não soubermos ler, não somos nada.
No dia seguinte, 26 pessoas – entre amigos e parentes – foram até a casa de seu pai para aprender com ele.
— Aí, pra mó d’eu começar a incentivar os outros, peguei três pedaços de pau e coloquei um ao lado do outro, bem paralelozinho. Peguei um pouco de carvão, soquei lá no pilão, peguei um pouco de álcool e um pouco de goma láctea, e enfiei uma tinta preta. Ficou um tipo duma lousa. Depois, fui lá num lixão e arrumei um pedaço de gesso, aquele gesso de fazer teto de casa, tirei um pedaço e fiz um tipo dum giz. As primeiras letras que eu escrevi foram o a-e-i-o-u, que foram as primeiras letras que eu aprendi da carta de ABC. Fui explicando pro pessoal e ninguém sabia fazer um “a”, fazer um “e”. Aí eu fui pegando na mão de cada um e ensinava.
A irmã de Severino, Maria José da Conceição, também assistia às aulas. Como convivia com o irmão, aprendeu mais rápido do que os outros alunos e passou também a lecionar na pequena escola improvisada. Em três meses, o número de alunos chegava a 100. E em um ano, Severino diz ter “formado” 231 pessoas.
— Aí depois teve o prefeito lá da cidade de Limoeiro, que passou o cargo pro filho e se propôs a ser candidato de Orobó. Ele ganhou a eleição, porque tirou título pra todo mundo – já que quase todos sabiam escrever o nome –, comprou roupa pro pessoal, calçado, chapéu…
Do tipo de coisa que só acontece nestes tristes trópicos. O político ainda prometeu construir uma escola em Orobó e colocar Severino no cargo de diretor, se ele concluísse pelo menos a 5ª série. Severino deu de ombros